O projeto anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, acaba com a ampla defesa e o contraditório, na medida em que reduz o formalismo do processo. O entendimento é do advogado Juarez Cirino dos Santos, professor aposentado da UFPR, que proferiu a conferência de encerramento do evento que debateu o tema ao longo de toda a sexta-feira (15). Ele dividiu o painel com outro expoente da advocacia criminal brasileira, o jurista Jacinto Coutinho.
“A ideia fundamental deste projeto é ampliar os poderes das polícias, do Ministério Público e do Judiciário. O projeto não tem exposição dos motivos porque não sabe como explicar. Assim oculta a sua ignorância”, criticou Santos.
Para o jurista paranaense, há uma evidente confusão conceitual entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. “Presunção de inocência é um conceito qualitativo, que não admite graduação. A não culpabilidade permite. Uma é diferente da outra. Não se admite que se diga que um é mais ou menos inocente que o outro. É um conceito absoluto. Pode ser mais ou menos culpável. A hipótese de acusados mais inocentes ou menos inocentes é absurda. Suprime-se, com esta confusão, um direito fundamental previsto na Constituição”, argumentou.
“Como uma pessoa que não conhece absolutamente nada de Direito Penal, que é incapaz de discutir a teoria do crime ou da pena, que não conhece nada de política criminal – a julgar pelas suas sentenças, não conhece nem mesmo o Processo Penal – inaugura uma nova política criminal e nos faz discutir um conjunto de bobagens que ele propõe neste projeto?”, questionou Santos.
Outro ponto discutido por Juarez Cirino dos Santos foi a proposta de ampliação dos limites da justificação de legítima defesa para agentes policiais ou de segurança. “A proposta de Moro faz uma ampliação dos limites da justificação para estes agentes e coloca alguns conceitos que são absolutamente indetermináveis. ‘Em situação de conflito armado ou de risco iminente, o agente pode prevenir agressão’. O que é um conflito armado? O que é o risco iminente de conflito armado? Teremos um recrudescimento da matança de jovens, negros e pobres”, afirmou.
Sobre o endurecimento do cumprimento de pena, ele lembrou de estudos que mostram não haver a menor eficácia corretiva do apenado, nem redução da criminalidade. “Pelo contrário. Quanto maior a pena, maior a reincidência. Reincidência é um pensamento positivista, que mostra o fracasso do projeto técnico punitivo da prisão”, sustentou.
Democracia em risco
Na avaliação de Jacinto Coutinho, nunca o cidadão esteve tão exposto e nunca o processo penal esteve tão ameaçado. “Quando você tira daquele sistema (common law) um instituto como o plea bargain e coloca nesta estrutura inquisitorial brasileira, onde o juiz é o centro do processo, mandando e desmandando, é evidente que haverá a potencialização do sistema punitivo”, sustentou Coutinho.
Para o jurista paranaense é evidente que a hipervalorizarão de institutos como o plea bargain levam ao aumento do encarceramento. “O que temos medo de verdade é que justo aquela gente da periferia, que não tem como se proteger, vai pagar o pato. Mesmo nos países que implantaram novos códigos com sistema acusatório, mas onde se manteve a mentalidade inquisitorial, onde não se mudou para uma mentalidade acusatória, o processo penal segue no mesmo padrão. Se na grande massa dos crimes você faz um plea bargain permitindo uma pena compactuada, tudo vira acerto, tudo vira negócio”, criticou.
“Do ponto de vista político, tenha presente que ninguém pode alegar que não sabia que este governo ia fazer coisas assim. Nós sabíamos que faria coisas assim e foi democraticamente eleito. É assim e será pior. Todo mundo que fez isso deveria saber que a massa da periferia é que de fato vai sofrer. Não se iludam. Agora teremos que lutar para manter minimamente a estrutura democrática que o país tem”, lamentou.
O que deve prevalecer, sustentou Coutinho, é o respeito à Constituição e às regras democráticas. “Presenciamos a derrocada da Constituição da República. E só tem uma solução: a resistência. Precisamos do conhecimento que nós, advogados, particularmente temos. Precisamos ter a Constituição na mão. Na guerra ninguém ganha. Depois que se dá o primeiro tiro, ninguém sabe mais por que está atirando”, disse.
“Todos estes projetos que solapam e retiram a forma do estado de bem-estar são projetos que se destinam à periferia, mas respondem de uma base epistemológica diferente. Pensamos desde um modelo neoliberal. Quantas vezes eu disse que o nosso dilema era efetivamente o controle? Cada vez que havia uma barbaridade, recorríamos ao controle. Respondia-se a uma ordem mínima estabelecida. De um determinado momento em diante, foi-se a ordem. Se imaginávamos que a legalidade nos salvaria, estávamos enganados”, alertou Coutinho.
Legalidade
Nas ponderações finais, o presidente da mesa, Juliano Breda, destacou que a preocupação da advocacia é com a Constituição da República e com a legalidade, com um sistema penal que produza menos violência e menos injustiças.
Breda fez ainda um breve histórico do princípio da presunção de inocência, da forma como foi pensado pela comissão de juristas que antecedeu a Assembleia Nacional Constituinte, como foi estabelecido na Constituição, reforçado depois por outros textos legislativos, até ser relativizado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
“O STF rasga a história do princípio da presunção de inocência”, disse Breda. “Qual o país que conseguiu encarcerar tanta gente poderosa? Nenhum país do mundo colocou tanta gente com poder político e econômico na cadeia e o nosso processo penal não serve?”, questionou.
Breda também criticou o plea bargain, alertando para o aumento no número de pessoas encarceradas. “Esses recursos recuperados pela Lava-Jato vão desaparecer no ralo do sistema penitenciário”, previu.
Para Juliano Breda, o projeto anticrime aniquila o direito de defesa e é um ataque à advocacia criminal.
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