Em artigo publicado na Gazeta do Povo nesta quinta-feira (06/10), a presidente da OAB Paraná, Marilena Winter, trata da qualidade do ensino jurídico no país. A advogada chama a atenção para o surgimento desenfreado de novos cursos e o aumento da modalidade de ensino a distância e o impacto disso na qualidade do ensino jurídico, preocupações que emergem dos debates sobre a questão.
“Sem reflexão e aprimoramento, a formação acadêmica fica deficiente e o futuro profissional dos estudantes ameaçado. Também se coloca em xeque a boa prestação jurisdicional e a segurança jurídica requerida para que alcancemos o ideal de viver em um país plenamente desenvolvido”, destaca a advogada.
Confira a íntegra do artigo neste link.
Por um ensino jurídico mais sólido para formar bem nossos advogados
Por Marilena Winter
Estamos na altura do ano em que celebramos o Dia do Professor e em que se aproximam as datas dos vestibulares. É momento oportuno para discutir um tema muito caro à Ordem dos Advogados do Brasil – a qualidade do ensino jurídico. Chamo a atenção para duas preocupações centrais que emergem dos debates sobre a questão: o surgimento desenfreado de novos cursos e o aumento da modalidade de ensino a distância e o impacto disso na qualidade do ensino jurídico.
Atuam no Brasil hoje, de acordo com números registrados pelo Conselho Federal da OAB, 1,37 milhão de advogadas e advogados – um para cada 164 brasileiros. Dados da American Bar Association (ABA) apontam para um número absoluto semelhante nos Estados Unidos: 1,327 milhão de advogados. Contudo, pelo fato de a população ser maior que a brasileira – atualmente são, segundo o Worldmeters, 335,36 milhões de habitantes –, a proporção norte-americana é de 1 profissional para cada 252 habitantes.
A comparação fica ainda mais impactante quando se considera o fator da desigualdade social, que torna o acesso a um advogado inviável para significativa parcela dos brasileiros. Além disso, o ritmo do avanço é bem mais lento por lá, o que pode ser observado comparando-se o salto da última década. O número atual de advogados em atuação nos EUA hoje é 6,6% maior que o registrado em 2012 – quando a ABA contava 1,25 milhão de advogados. No mesmo ano, segundo a OAB, o Brasil contava com 729 mil advogados. Ou seja, por aqui o ritmo de crescimento de profissionais em atuação foi de 87,9%.
O aspecto da escassez de campo de trabalho causa, claro, grande inquietação. Mais alarmante, porém, é observar que a mercantilização do ensino tende a levar à graduação de bacharéis que não estão preparados para atuar na profissão que lida com o que cada pessoa tem de mais valioso – sua dignidade, sua honra, sua vida, sua família, sua liberdade, seus direitos fundamentais. Na esperança de um futuro melhor, muitos estudantes e suas famílias fazem enormes sacrifícios para se manter em instituições de ensino que não os preparam bem. Esse verdadeiro estelionato educacional, que obviamente não afeta somente o campo do Direito, precisa acabar.
Nesse aspecto, o Exame de Ordem cumpre papel decisivo. Na 33ª edição da prova, aplicada em 2021, a taxa de aprovação foi de 31,4% – note-se que apesar de baixo esse foi o maior índice desde que a unificação do exame, em 2010. A baixa taxa de aprovação dos estudantes no Exame de Ordem revela a deficiência na formação de muitos deles.
Por isso, tem sido longa a batalha da OAB para que o Ministério da Educação contenha o avanço indiscriminado de novos cursos de Direito e leve em conta os pareceres que faz não apenas em caráter consultivo, mas de forma decisiva para a validação ou não de um novo curso. De acordo com o Conselho Federal da OAB, atualmente há aproximadamente 1.800 cursos jurídicos no Brasil.
Em busca de ajudar a sociedade na escolha de bons cursos, a OAB criou em 1999 o Selo OAB Recomenda, que serve também como estímulo ao aprimoramento das instituições de ensino.
Além da criação desenfreada de cursos, acompanhamos o avanço generalizado da modalidade de ensino a distância. O Censo da Educação Superior, levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), vinculado ao Ministério da Educação, aponta que entre 2010 e 2020 o ingresso de estudantes em cursos de graduação a distância aumentou 233,9%. No mesmo período, a modalidade presencial registrou crescimento de apenas de 2,3%.
Felizmente, no dia 15 de setembro último, o Diário Oficial da União (DOU) publicou a Portaria 668/2022, editada pelo Ministério da Educação (MEC) para suspender as autorizações e renovações de cursos de graduação em Direito na modalidade de ensino a distância (EAD). A portaria também suspendeu os processos de reconhecimento dos bacharelados em Psicologia, em Enfermagem e em Odontologia. A suspensão dos cursos EAD de Direito atende a um pleito apresentado pela OAB, que se opõe à liberação de cursos de direito 100% EAD. É uma medida paliativa, mas um começo. Nosso pleito é pela suspensão da abertura de novos cursos – presenciais ou EAD – pelo prazo de dez anos. Não existe demanda social hoje para novos cursos.
Mesmo os modelos híbridos carecem de mais cuidado e acompanhamento. O aumento do percentual de horas de EAD nos cursos presenciais se mostra vantajoso para as instituições, dada a redução da quantidade de horas-aula presenciais e da demanda de professores em sala de aula. Não se trata de acréscimo, mas da substituição de horas presenciais por atividade virtual, o que não favorece a qualidade do ensino jurídico.
A formação hermenêutica, a capacidade de mediar a realidade e o preceito abstrato da norma são eixos centrais do curso do Direito e no ensino jurídico. Para bem trabalhá-los, a orientação dos docentes é fundamental. A autonomia na construção do conhecimento, requisito relevante para bons resultados no EAD, precisa ser solidamente estruturada dentro das propostas pedagógicas dos cursos, com um processo avaliativo permanente para se garantir a aquisição de competências por parte dos estudantes. Investimentos também são necessários para que os docentes sejam remunerados pelas horas trabalhadas e para que possam contar com ferramentas eficazes para orientação dos alunos.
Sem reflexão e aprimoramento, a formação acadêmica fica deficiente e o futuro profissional dos estudantes ameaçado. Também se coloca em xeque a boa prestação jurisdicional e a segurança jurídica requerida para que alcancemos o ideal de viver em um país plenamente desenvolvido. A paz social e o bem comum passam pela atenção permanente com a educação.
Estamos na altura do ano em que celebramos o Dia do Professor e em que se aproximam as datas dos vestibulares. É momento oportuno para discutir um tema muito caro à Ordem dos Advogados do Brasil – a qualidade do ensino jurídico. Chamo a atenção para duas preocupações centrais que emergem dos debates sobre a questão: o surgimento desenfreado de novos cursos e o aumento da modalidade de ensino a distância e o impacto disso na qualidade do ensino jurídico.
Atuam no Brasil hoje, de acordo com números registrados pelo Conselho Federal da OAB, 1,37 milhão de advogadas e advogados – um para cada 164 brasileiros. Dados da American Bar Association (ABA) apontam para um número absoluto semelhante nos Estados Unidos: 1,327 milhão de advogados. Contudo, pelo fato de a população ser maior que a brasileira – atualmente são, segundo o Worldmeters, 335,36 milhões de habitantes –, a proporção norte-americana é de 1 profissional para cada 252 habitantes.
A comparação fica ainda mais impactante quando se considera o fator da desigualdade social, que torna o acesso a um advogado inviável para significativa parcela dos brasileiros. Além disso, o ritmo do avanço é bem mais lento por lá, o que pode ser observado comparando-se o salto da última década. O número atual de advogados em atuação nos EUA hoje é 6,6% maior que o registrado em 2012 – quando a ABA contava 1,25 milhão de advogados. No mesmo ano, segundo a OAB, o Brasil contava com 729 mil advogados. Ou seja, por aqui o ritmo de crescimento de profissionais em atuação foi de 87,9%.
O aspecto da escassez de campo de trabalho causa, claro, grande inquietação. Mais alarmante, porém, é observar que a mercantilização do ensino tende a levar à graduação de bacharéis que não estão preparados para atuar na profissão que lida com o que cada pessoa tem de mais valioso – sua dignidade, sua honra, sua vida, sua família, sua liberdade, seus direitos fundamentais. Na esperança de um futuro melhor, muitos estudantes e suas famílias fazem enormes sacrifícios para se manter em instituições de ensino que não os preparam bem. Esse verdadeiro estelionato educacional, que obviamente não afeta somente o campo do Direito, precisa acabar.
Nesse aspecto, o Exame de Ordem cumpre papel decisivo. Na 33ª edição da prova, aplicada em 2021, a taxa de aprovação foi de 31,4% – note-se que apesar de baixo esse foi o maior índice desde que a unificação do exame, em 2010. A baixa taxa de aprovação dos estudantes no Exame de Ordem revela a deficiência na formação de muitos deles.
Por isso, tem sido longa a batalha da OAB para que o Ministério da Educação contenha o avanço indiscriminado de novos cursos de Direito e leve em conta os pareceres que faz não apenas em caráter consultivo, mas de forma decisiva para a validação ou não de um novo curso. De acordo com o Conselho Federal da OAB, atualmente há aproximadamente 1.800 cursos jurídicos no Brasil.
Em busca de ajudar a sociedade na escolha de bons cursos, a OAB criou em 1999 o Selo OAB Recomenda, que serve também como estímulo ao aprimoramento das instituições de ensino.
Além da criação desenfreada de cursos, acompanhamos o avanço generalizado da modalidade de ensino a distância. O Censo da Educação Superior, levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), vinculado ao Ministério da Educação, aponta que entre 2010 e 2020 o ingresso de estudantes em cursos de graduação a distância aumentou 233,9%. No mesmo período, a modalidade presencial registrou crescimento de apenas de 2,3%.
Felizmente, no dia 15 de setembro último, o Diário Oficial da União (DOU) publicou a Portaria 668/2022, editada pelo Ministério da Educação (MEC) para suspender as autorizações e renovações de cursos de graduação em Direito na modalidade de ensino a distância (EAD). A portaria também suspendeu os processos de reconhecimento dos bacharelados em Psicologia, em Enfermagem e em Odontologia. A suspensão dos cursos EAD de Direito atende a um pleito apresentado pela OAB, que se opõe à liberação de cursos de direito 100% EAD. É uma medida paliativa, mas um começo. Nosso pleito é pela suspensão da abertura de novos cursos – presenciais ou EAD – pelo prazo de dez anos. Não existe demanda social hoje para novos cursos.
Mesmo os modelos híbridos carecem de mais cuidado e acompanhamento. O aumento do percentual de horas de EAD nos cursos presenciais se mostra vantajoso para as instituições, dada a redução da quantidade de horas-aula presenciais e da demanda de professores em sala de aula. Não se trata de acréscimo, mas da substituição de horas presenciais por atividade virtual, o que não favorece a qualidade do ensino jurídico.
A formação hermenêutica, a capacidade de mediar a realidade e o preceito abstrato da norma são eixos centrais do curso do Direito e no ensino jurídico. Para bem trabalhá-los, a orientação dos docentes é fundamental. A autonomia na construção do conhecimento, requisito relevante para bons resultados no EAD, precisa ser solidamente estruturada dentro das propostas pedagógicas dos cursos, com um processo avaliativo permanente para se garantir a aquisição de competências por parte dos estudantes. Investimentos também são necessários para que os docentes sejam remunerados pelas horas trabalhadas e para que possam contar com ferramentas eficazes para orientação dos alunos.
Sem reflexão e aprimoramento, a formação acadêmica fica deficiente e o futuro profissional dos estudantes ameaçado. Também se coloca em xeque a boa prestação jurisdicional e a segurança jurídica requerida para que alcancemos o ideal de viver em um país plenamente desenvolvido. A paz social e o bem comum passam pela atenção permanente com a educação.