Confira o discurso proferido pelo advogado José Lucio Glomb ao receber a medalha Vieira Netto na noite de 11 de agosto de 2021:
Excelentíssimo presidente Cássio Lisandro Telles, nosso digno batonnier da Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Paraná, em nome de quem saúdo toda a diretoria da Ordem aqui presente, bem como os Conselheiros Estaduais e Federais da Instituição, os Presidentes das Subseções
Autoridades já nominadas pelo cerimonial
Colegas Advogados e advogadas, Senhoras e Senhores que prestigiam essa solenidade e também aos que participam de forma virtual.
Antes de tudo, cabe-me a incumbência de agradecer a concessão desta medalha. Dizer da minha gratidão à diretoria e aos membros do Conselho Pleno, que viram neste advogado de intensa militância, um advogado de trincheira como se referia um velho professor, o nome indicado para receber a maior láurea concedida pela nossa entidade. Muitos outros advogados a merecem e com eles divido a honra da homenagem.
Mas também é imperioso agradecer outras pessoas, porque não cheguei sozinho até aqui. Neste verdadeiro Caminho de Santiago metafórico que trilhei ao longo de quase 45 anos de advocacia, tive muitos companheiros que me apoiaram, me encorajaram e me trouxeram a este momento. A todos eles, o meu mais profundo agradecimento.
Tenho plena convicção e sempre confessei que essa grande caminhada não teria acontecido sem a participação da Suely, minha querida esposa, para mim a maior das advogadas. Passamos por muitas dificuldades, como a maioria dos advogados no início da profissão, mas sempre superadas sem renunciar aos fundamentais valores exigidos da advocacia. Isto nos fortaleceu mutuamente. Contei com a competência e o amor, que retribuo, dessa notável advogada. Ela bem representou a luta da mulher advogada nas suas múltiplas atividades, sobrecarregada com os afazeres profissionais, acumulados com a vida familiar. Não é fácil essa arte. A essa grande advogada dedico a honraria que recebo hoje e através dela homenageio todas as mulheres advogadas.
Quis o destino que entre os advogados que hoje fazem parte do escritório, estejam nossos filhos, Angela, Daniel e Marcia, todos seguindo os passos do direito, procurando levar justiça a quem dela mais precisa. Quanto orgulho em ver o reconhecimento dos filhos no simples ato de seguir a mesma profissão dos pais.
Não posso esquecer a figura maiúscula de João Régis Fassbender Teixeira, pelas mãos de quem iniciei esta jornada.
João Régis foi um advogado amigo, inteligente, um professor que na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná angariava o respeito dos alunos por lecionar, com total conhecimento, todos os assuntos concernentes à legislação, à doutrina e à jurisprudência do Direito do Trabalho. Em seu escritório, ensinava aos jovens colegas todos os segredos da advocacia forense. Um homem com quem trabalhei por dez anos e com quem aprendi para uma vida toda.
Obrigado, meu querido e saudoso amigo Régis. Jamais o esquecerei!
Receber esta medalha é a honra maior a um advogado paranaense. Poucos a receberam até esta data e faço questão de nominá-los: Alir Ratacheski, René Ariel Dotti, Egas Dirceu Moniz de Aragão, que já não estão entre nós; e Eduardo Rocha Virmond, Newton José de Sisti, Alfredo de Assis Gonçalves Neto e Edni de Andrade Arruda.
Sete nomes da maior representatividade da nossa classe, capazes de honrar a memória do grande José Rodrigues Vieira Netto, que dá nome a esta honraria.
Vieira Netto foi um Presidente que deixou uma marca indelével nesta Seccional , na defesa da democracia e da liberdade, contribuindo com a sua vasta cultura e obstinada resistência a tudo que pudesse colocá-las em risco.
Ele foi paraninfo na colação de grau dos bacharéis de 1964, mas por deliberação do Reitor e do Conselho Universitário, seu discurso não pôde ser lido na cerimônia.
A homenagem que os alunos prestaram ao seu paraninfo e a outros professores, de improviso, fez com que Vieira Neto reescrevesse seu discurso, não só em homenagem aos moços universitários, mas principalmente para denunciar à Nação o clima de intolerância, de servilismo, ignorância e de ódios pessoais que se instalara em algumas universidades, como bem lembrado por sua filha Cecília Maria Vieira Helm em obra dedicada à memória de seu pai.
O discurso reescrito abordou as quatro liberdades: a liberdade de dizer, a liberdade de não temer, a liberdade de crer e a liberdade de ter segurança.
Ao discorrer sobre a liberdade de não temer, legou seu pensamento, com uma lição:
“Quando se pretende interrogar as ideias, censurar a ciência, impedir o livre curso do pensamento, renegar a cultura, é porque o Medo se transferiu dos oprimidos para os opressores…”.
Vieira Netto era autêntico e corajoso. Naquele momento em que as liberdades eram cerceadas, era importante deixar a marca da resistência.
John Stuart Mill, nas “Considerações sobre o Governo Representativo”, escreveu que
“há duas espécies de cidadãos, os ativos e passivos; os governantes preferem os segundos, pois é mais fácil de dominar súditos dóceis ou indiferentes, mas a democracia necessita dos primeiros. Se devessem prevalecer os cidadãos passivos, os governantes acabariam prazerosamente por transformar seus súditos num bando de ovelhas, dedicadas tão somente a pastar o capim, uma ao lado da outra. E pior, a não reclamar mesmo diante de um capim ralo e escasso”.
Vieira Netto não era de se calar e, por isso, sofreu dura repressão.
Hoje, caros colegas, vivemos um tempo difícil, assolados por uma pandemia persistente e letal. Muito longe do que poderia imaginar na infância feliz que vivi em Porto União da Vitória, uma cidade em duas, divididas por uma linha de trem que não as afasta, pelo contrário, facilita as coisas para que vivam como em uma só. Quem lá nasce, tem amor pelas duas cidades.
Outro dia recebi de um querido amigo, amizade que persiste por mais de 65 anos, uma foto da casa onde passei a infância. Naqueles anos do final da década de 1950, a vida submetia-se à liberdade, uma graça de que nossos filhos e netos hoje não podem dispor com aquela amplitude.
Lembrei que, de tempos em tempos, lá na poeirenta rua D. Pedro II, passava uma boiada, vinda dos campos de Palmas. Bons tempos em que “passar boiada” significava literalmente isso.
Hoje o sentido é outro: “passar a boiada” pode ser mau sinal, o de apressar, quase às escondidas, alterações na legislação, afetando o meio-ambiente tão essencial para nossas vidas e para a vida das futuras gerações.
Ainda nesta última segunda-feira, dia 9 de agosto, a Organização das Nações Unidas, através do IPCC, sigla em inglês para o Painel Intergovernamental de Mudança do Clima, emitiu um relatório, assinado por 234 autores, de 65 países. Ela alerta para a gravidade e aumento de eventos extremos, atingindo nosso planeta, como tempestades, enchentes, furacões, ciclones, secas prolongadas e ondas de calor.
Já estamos sofrendo com essa triste realidade.
E o governo aqui “passando a boiada” nas normas ambientais, fragilizando a proteção ao meio ambiente, não avaliando com rigor as funestas consequências desses atos.
Nossas futuras gerações haverão de questionar, perguntarão onde estávamos nós, neste momento. Devemos agir para mudar essa situação agora, para que elas não sofram no futuro.
Recordo que lá em União da Vitória, certa vez, passou Janio Quadros. Quem diria que aquele homem, de ideologia populista, se elegeria Presidente da República com uma soma gigantesca de votos e pouco tempo depois renunciaria, tentando dar um autogolpe, felizmente mal sucedido.
O episódio Jânio Quadros deveria ter servido de alerta e lição para evitarmos futuras aventuras, mas parece que muitas vezes falta compreensão do alcance da democracia – sempre em risco, sempre atacada, necessitando ser cultivada dia a dia para que não venha a ser subestimada e substituída.
O fato é que essa imperfeita forma de governo, a pior delas, segundo Churchill, exceto todas as demais, merece todo cuidado. Afinal, paradoxalmente, a democracia, pode ser usada contra ela mesma.
Gente que foi eleita democraticamente, diga-se de passagem, vê-se tentado a atacá-la de várias formas para manter-se aferrado ao poder. Por vezes dissimuladamente, mas em outras, nem tanto, como, por exemplo, atacando o sistema de voto via urna eletrônica, que indiscutivelmente, elegeu os representantes do povo e o próprio autor das denúncias vazias. Vislumbra-se um claro objetivo nessa contestação, aliada a pronunciamentos e comportamentos que miram a desestabilização das Instituições do Estado. Isto ocorre das mais diversas formas, todas condenáveis, como o intempestivo desfile militar de ontem, dia 10 de agosto, entendido como uma tentativa de intimidar o Congresso, que votava matéria do seu interesse.
É preciso desconfiar de quem usa a democracia para atacá-la, usando modo engenhoso e valendo-se de redes sociais para difundir a confusão do sofrido povo brasileiro e, por que não dizer, insuflando antagonismo e ódio entre as pessoas, quando a paz é que deve imperar.
Parece que temos dificuldade em acertar, pois o povo condenou governos marcados pela corrupção, buscando eleger uma alternativa positiva ao status quo então instalado. O resultado que vemos, no entanto, soa como um alerta. Mas ainda há tempo para evitar as consequências de uma ruptura da nossa recente redemocratização.
A coragem que não faltou a Vieira Neto, deve estar presente na vida do advogado, na defesa da cidadania, do estado democrático de direito, que jurou defender. Ela esteve com nossos ex-presidentes da OAB-PR, esteve com Eduardo Virmond na histórica Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, em 1978, no Teatro Guaíra, quando os advogados deram um basta ao arbítrio e logo depois foi revogado o Ato Institucional nº 5, um passo marcante para que o Brasil voltasse à democracia plena.
Cabe a nós, advogados, novamente resistir com as armas da legalidade, as armas da palavra, aquelas permitidas pela responsável liberdade de expressão, para que nossa democracia não sucumba, pois temos plena consciência do alto preço que pagamos para que ela fosse restabelecida em nosso País.
É claro que existem adversários poderosos e, dentre eles, os que se valem da corrupção, apontada como a grande causa dos nossos males. Porém, ela segue na berlinda, exercida sem pejo, manifestando-se de diversas formas.
Aqui no Paraná, esta Seccional não hesitou um minuto em lançar a campanha O Paraná que Queremos, na esteira das escabrosas descobertas de um grupo de jornalistas do Grupo RPC sobre os diários secretos, escândalo perpetrado nos porões da Assembleia Legislativa do estado.
Milhares de pessoas, centenas de entidades, somaram-se à nossa Instituição e destaco, dentre elas, a Associação Paranaense dos Juízes Federais – a Apajufe, com seu presidente Anderson Furlan, como parceira de primeira hora e com a qual redigimos uma lei da transparência para o Paraná e que está em vigor. Bilhões de reais, recursos públicos, deixaram de ser desperdiçados desde então, graças a esse grande movimento, precursor de outros no plano nacional.
A Ordem dos Advogados não deve ter nenhuma atuação político partidária, porém isto não significa que renuncie a posicionar-se sobre a proteção, sobre a manutenção do estado democrático de direito e sobre a Constituição. Isto insere-se por lei dentre as suas obrigações.
Lembro que os advogados são essenciais ao funcionamento da Justiça e segundo Rui Barbosa, “legalidade e liberdade são o oxigênio e o hidrogênio da nossa atmosfera profissional”.
Caros colegas,
Sempre desejei ser advogado e amo esta profissão.
Sempre quis ser advogado, embora minha mãe não pensasse da mesma maneira. Lembro-me que já dentro do ônibus que me traria a Curitiba para fazer a inscrição ao vestibular, ela pediu que eu abrisse a janelinha. E aí, despedindo-se do filho que iria dar um passo decisivo na vida, pediu:
— Quem sabe, meu filho, lá em Curitiba você mude de ideia e faça inscrição para o vestibular de… Medicina.
Mas ao ver minha disposição e vocação, meus pais me apoiaram decisivamente e sempre elevo o meu pensamento a eles, pessoas simples, honestas, bondosas, leais a princípios e valores essenciais para a vida.
Não tenho arrependimentos por haver me mantido fiel à vocação.
Ser advogado é ser devotado aos princípios éticos, é estudar, ter paciência, persistência e fé. Conclamo os advogados que hoje comemoram seu dia, para que mantenham-se fiéis às suas vocações, cumprindo os maiores ideais da advocacia. E sejam solidários e resistentes a qualquer tentativa de agressão à democracia.
Continuem inconformados contra a insegurança jurídica, que atravessa o tempo e causa tanta injustiça e prejuízo, às partes e ao País, pois a justiça não pode ser um jogo de sorte ou azar, em que cada juiz interpreta a lei à sua maneira, muitas vezes ao arrepio da própria norma legal.
Ao receber essa homenagem, que nunca esquecerei, volto os olhos a essa longa trilha percorrida, onde atravessamos vales e montanhas, cruzamos riachos de águas calmas e límpidas e outros com corredeiras tempestuosas. Sentimos que o caminho da vida, como a natureza, percorre todas as estações do ano, com suas características. E por mais que o inverno seja rigoroso, a primavera sempre retorna com suas flores.
Existem outras estradas e montanhas pela frente. Peço a Deus que elas sejam iluminadas com o brilho do sol, na esperança de que, ao olhar o horizonte, possamos dizer que não é uma utopia ver a felicidade , a paz e a justiça prevalecer na humanidade.
Muito obrigado!