O jurista argentino Emílio Garcia Mendez não usa eufemismos para falar do sistema socioeducativo no Brasil: são unidades de privação de liberdade, uma vez que medidas socioeducativas são penas. Para o especialista, que foi representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no Brasil durante a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos anos 1990, a resistência cultural em relação à real função das sanções é um dos fatores que contribuem para enfraquecer a defesa técnico-jurídica no país. Este é considerado pelo jurista o elo mais fraco do sistema de administração de justiça da infância.
“Ou nós utilizamos a privação de liberdade como uma resposta séria e legítima do Estado perante os delitos gravíssimos que cometem os menores de idade, ou utilizamos a medida de privação de liberdade como uma política social, reforçada para os adolescentes pobres de periferias urbanas. Esse é o dilema”, sustentou Mendez em entrevista concedida à Revista da Ordem. Confira:
O Estatuto da Criança e do Adolescente já completou 28 anos: o que mudou na situação das crianças e adolescentes no Brasil desde a implantação do estatuto?
O ECA pode ter mil problemas, mas é a lei áurea da infância. Não tenho dúvidas de que é uma lei fundamental, que mudou a história do país. Quando recebi o convite para participar deste evento organizado pela OAB [II Congresso Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente], fiz questão de vir, porque não precisa ter muita sutileza para entender que, hoje, o elo mais fraco do sistema de administração de justiça da infância é a defesa técnico-jurídica, e não só por problemas orçamentários. Do ponto de vista orçamentário, a condição sine qua non do devido processo é a paridade de armas, a igualdade da acusação e da defesa. Quando olhamos o orçamento do Ministério Público e o da Defensoria Pública, onde está a paridade de armas? O país precisou de uma súmula do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) para entender que a prescrição, no que diz respeito aos delitos cometidos pelos menores de idade, era uma garantia, como no caso dos adultos. No caso da infância, o Brasil mudou a lei há quase 30 anos, mas ainda há muita resistência cultural, por exemplo, em considerar que as sanções não são sanções. Entende-se que sanção não é uma pena, é um bem. Logo, não precisa de advogado. Acredito que se tem uma instituição que pode trabalhar hoje para procurar reverter esta situação é a OAB. Já fui há muitos anos presidente da Comissão da Infância da ordem dos advogados da Argentina. E nós enfrentamos os mesmos problemas. Todos os países da América Latina têm problemas comuns, para o bem ou para o mal.
Algum desses países latino-americanos estão avançando?
Se tem um país que tem implantado um sistema de responsabilidade penal juvenil interessante, em sintonia com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, é a Costa Rica. E, veja o paradoxo: a Costa Rica tem a lei de responsabilidade penal juvenil mais dura da América Latina. Lá, a responsabilidade penal começa aos 14 anos, não aos 12, como no Brasil. Eles estabelecem uma distinção entre a faixa de 14-15 anos e outra de 16-17 anos. Para aqueles de 16-17 anos, a pena privativa de liberdade para os delitos gravíssimos, pode chegar a 15 anos. Porém, é o país da América Latina que tem o menor número de menores de idade privados de liberdade.
E como entender esse paradoxo?
Eles têm três coisas fundamentais: primeiro, é uma lei que não deixa aberto espaço de discricionariedade para interpretação do juiz; segundo, eles têm medidas alternativas à privação de liberdade para todos os delitos que não sejam aqueles gravíssimos (como latrocínio, estupro, sequestro). E eles têm a melhor e mais preparada defesa pública de toda a América Latina. Por isso digo que os problemas da defesa técnico-jurídica dos adolescentes não dizem respeito somente a questões orçamentárias, mas também a problemas culturais. Nem todos os defensores sabem que vêm ao mundo para ter um compromisso irrenunciável com o seu cliente, que é o adolescente infrator. Muitos acham que o dever deles é colaborar com o promotor, com o juiz. Isso que eu chamo de crise de identidade. A Costa Rica não tem crise de identidade. A bondade da defesa pública tem que ser medida não pela colaboração dos defensores públicos e promotores e juízes. Tem que ser medida pelo compromisso da defesa técnico-jurídica com o seu cliente.
Neste aspecto é uma questão cultural, então?
Muitas pessoas no Brasil e em outros países da América Latina acham que uma defesa fraca é uma vantagem. Por que? Porque, como a sanção é um bem, quanto mais fraca for a defesa, mais bem o sistema pode fazer aos meninos. Um grande pedagogo mineiro, Antonio Carlos Gomes da Costa, dizia que o principal problema do trabalho infantil no Brasil é que, para muitos, não é considerado um problema. É considerado uma solução. Para resolver uma questão, portanto, temos que construí-la como problema. Eu acredito que só a OAB pode construir a falta de defesa técnico-jurídica como um problema a ser resolvido. Porque hoje ainda não é visto como um problema para todo mundo, e sem uma defesa técnico-jurídica boa, não temos legitimidade no sistema de administração de justiça da infância.
A taxa de homicídios de adolescentes no Brasil é muito alta: somos o quarto país no ranking das mortes dolosas de crianças e adolescentes, segundo o Mapa da violência 2012 – Crianças e adolescentes do Brasil. Como os demais países da América Latina têm enfrentado esta questão?
O grave problema não é apenas a violência, mas a impunidade. Esses índices são assustadores, mas ficam muito pior quando olhamos o grau de impunidade em relação a esses homicídios. As causas são as mais variadas. E este não é um problema apenas do Brasil.
As políticas públicas em defesa da criança e do adolescente têm efetividade no Brasil?
Há muitos anos escrevi um artigo que foi muito discutido, que falava da dupla crise do ECA – uma crise muito fácil de entender e muito complicada de resolver – que era a de implementação. Diz respeito ao baixo nível de efetividade das políticas sociais. Esta crise de implementação se articula com outra crise muito complicada de resolver, e também de entender, que é a crise de interpretação. Ainda culturalmente, muitos pretendem operar o ECA, que é um plexo normativo garantista, como se fosse uma lei de caráter tutelar. Por isso que há um movimento não só no país, mas em outros países da América Latina, que é o neomenorismo, que são aqueles que acham que alguns têm ido longe demais em considerar as crianças e adolescentes como sujeitos de direito. Porque ninguém é sujeito de direito se não é sujeito de responsabilidade. Então se brinca muito com um falso progressismo que diz que os adolescentes não têm responsabilidade penal, mas têm responsabilidade social. O único país do mundo em que a responsabilidade social tinha consequências penais era a Alemanha, entre 1933 e 1945. E essa história sabemos como acabou. O Código Penal do nacional socialismo alemão tinha um artigo cujo tipo penal era “não ser um bom alemão”. Isso era uma responsabilidade social, porém com consequências penais. Então todos aqueles que durante muitos anos falavam que adolescentes não tinham responsabilidade penal, que tinham responsabilidade social, alimentavam o caráter punitivo das propostas informais.
O que o senhor pensa sobre a redução da maioridade penal?
Sou daqueles que consideram que, sem nenhuma dúvida, a inimputabilidade é uma cláusula pétrea da Constituição. Baixar a idade da imputabilidade não só não resolve nada como agrava consideravelmente a questão. Sou daqueles que acham um absurdo ter responsabilidade a partir dos 12 anos, que a responsabilidade deveria começar aos 14 anos. E que deveriam ter sanções diferenciadas entre as faixas dos 14,15, 16 e 17 anos. Eu participei dos últimos debates do ECA, em 1990, quando cheguei ao Brasil. Fiz parte das discussões como representante da UNICEF. Eu jamais colocaria no ECA um artigo como o art.123, que fala que a privação de liberdade é uma medida que só pode ser aplicada quando há um delito praticado com grave ameaça ou violência. Esse artigo deixa aberto espaço para a discricionariedade, para que um juiz fale “na minha comarca, furtar uma bicicleta é uma grave ameaça”. Eu vincularia a privação de liberdade só a tipos penais graves, não deixaria aberto à discricionariedade do juiz. E qual é o meu modelo neste sentido? É a lei penal da Costa Rica.
Com relação às unidades que recebem as crianças e adolescentes aqui no Brasil, qual a sua avaliação?
Eu conheço os relatórios que foram feitos, mas não dos últimos dois anos. Eu rejeito os eufemismos, portanto as unidades não são de internação, mas de privação de liberdade. Quem fala em privação de liberdade é a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Quando se fala em internação, pode-se pensar que o menino está doente. Internação é um termo da medicina, não do direito. Então é preciso acabar com o festival de eufemismos: medidas socioeducativas são penas. Que elas têm que ter um caráter educativo é uma outra história. Se nós entendemos que não são penas, então queremos fazer o bem para todo mundo. Quando visito uma unidade de internação no Brasil, na Guatemala, na Argentina, a minha primeira pergunta não diz respeito às condições materiais, se tem esporte, se tem cultura, mas se tem pertinência jurídica. A minha primeira preocupação é se estes adolescentes merecem estar privados de liberdade. O grande dilema que temos hoje na América Latina é: ou nós utilizamos a privação de liberdade como uma resposta séria e legítima do Estado perante os delitos gravíssimos que cometem os menores de idade, ou utilizamos a medida de privação de liberdade como uma política social, reforçada para os adolescentes pobres de periferias urbanas. Esse é o dilema. E acredito que seja o dilema na Guatemala, El Salvador, Brasil, Chile, Argentina e Uruguai.