O Brasil sacode-se com o debate sobre liberdade de expressão, fake news, volta da censura, gabinete do ódio, ofensas orquestradas aos poderes, radicalizações por discursos de intolerância, enfim a discussão sobre a garantia fundamental do direito de opinião e livre expressão está de volta, com tanta polêmica e intensidade, quanto nos tempos da ditadura militar. Mas agora o cenário é outro, pois as redes sociais potencializam a arena das manifestações e, por vezes, quem se manifesta não tem cara, não tem identidade, ou usa falsa identidade e a repercussão de um comentário que pareceria ser individual amplia-se sem limites pelo uso de robôs. Além disso, estamos em plena democracia.
Como contraponto, e na tentativa de frear abusos, surge a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), o órgão máximo do Judiciário, a última instância recursal, que, em nome de conter os abusos, instaurou um inquérito sui generis, em atitude também nunca antes vista, pois o Judiciário, reconhecidamente órgão imparcial e que deve zelar pela correta interpretação e aplicação da lei, de forma equidistante das partes interessadas, viu-se na condição de vítima, assim como também os ministros da mais alta corte do país, e, a partir daí, decidiu tomar as rédeas, instaurando o inquérito, conduzindo-o, nomeando a equipe de policiais federais encarregada da investigação, determinando diligências, decretando ele mesmo quebra de sigilos, buscas e apreensões, retirada de perfis das redes sociais, adotando medidas extremas previstas na lei das organizações criminosas.O argumento central para isso: a suposta omissão do Ministério Público Federal (MPF), que teria deixado de investigar, e a possibilidade prevista no artigo 43, do Regimento Interno do STF, que permite ao presidente instaurar inquérito quando se tratar de infração à lei penal “na sede ou dependência do Tribunal”.
O que é “sede ou dependência do Tribunal” é o primeiro grande problema desse inquérito. O STF interpretou que manifestações em redes sociais, cuja origem pode vir de qualquer lugar, têm identidade, nesse caso, com o conceito do regimento interno de “uma infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal”.
Mas há sérios perigos para a ordem democrática nesse inquérito. Aponto quatro gravíssimas questões, que colocam em risco a harmonia dos poderes, a imparcialidade do Judiciário, o devido processo legal e o direito à ampla defesa a ser exercido pela advocacia: a forma de instauração é questionável; o objeto do inquérito está indefinido e pode atingir qualquer manifestação assegurada pela liberdade de expressão; o tempo de duração pode colocar cidadãos em geral em permanente estado de ameaça ao exercício desse direito; e a ampla defesa, ao que nos parece, está sendo cerceada pelo sigilo imposto em prejuízo ao acesso amplo dos advogados.
Inquéritos não são meros procedimentos, eles têm largo espectro capaz de atingir as liberdades. Pense-se nas medidas decretadas neste — quebra de sigilo, retirada de perfis de redes sociais e buscas e apreensões. Por isso, a lei processual penal regulamenta os inquéritos com rigor. O artigo 4º., do Código de Processo Penal diz que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. É altamente questionável um magistrado instaurar um inquérito, bem como um magistrado dirigir as investigações comandando a polícia. Quem controlará os atos desse magistrado, ainda mais em se tratando de ministro da mais alta corte? Também o Código de Processo Penal diz, no parágrafo 1º., do artigo 5º., que o requerimento da autoridade do Judiciário ou do MP que requisitar à polícia a instauração do inquérito descreverá, sempre que possível: a narração do fato, com todas as circunstâncias, a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de o fazer.
Inquérito tem que ter objeto específico; este não tem. Ele começou por conta de supostos ataques ao presidente da corte, passou pela reportagem da Revista Crusoé e depois se transformou numa investigação sobre tudo que se publicava em redes sociais, a ponto de o relator enviar para os Ministérios Públicos Seccionais publicações em redes sociais de cidadãos do interior do país. O inquérito transformou-se num dos maiores processos em volume de documentos, são mais de 10.000 páginas.
O inquérito também precisa ter tempo de duração. O artigo 10 do Código de Processo Penal estabelece que o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias se o indiciado tiver sido preso em flagrante ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. Este já dura mais de um ano e foi prorrogado por mais 180 dias, irá até 2021. Sobre esse tema, o STF se posicionou acertadamente quando do julgamento do Inquérito 4419. Nas palavras do Min. Gilmar Mendes: “Portanto, entender que apenas o Ministério Público possui a prerrogativa de determinar o arquivamento de uma investigação e que o investigado pode se submeter, indefinidamente, a um inquérito destituído de qualquer base empírica e legal ignora os princípios da separação de poderes e do Estado de Direito, além de menosprezar os direitos fundamentais do investigado diretamente relacionados à dignidade da pessoa humana, bem como a função de garantidor desses direitos, que deve ser exercida pelo Poder Judiciário.”
Por último, há o problema do sigilo: desde o início ele foi decretado e até agora os advogados dos investigados, que já foram individualizados, tiveram acesso apenas a um dos volumes do inquérito, o apenso 70, que tem cerca de 400 páginas, quando o inquérito tem mais de 10.000 páginas. A defesa deve ter acesso amplo e a justificativa do Judiciário de que não abre o restante porque são fatos ainda em investigação não se sustenta, justamente pelo largo tempo que esse inquérito já dura, mais de um ano.
Parece ser mesmo o “inquérito do fim do mundo”, porque aquilo que outrora era sagrado no devido processo legal –iniciativa para investigar, acusar, atuação equidistante e imparcial do Poder Judiciário, objeto da investigação delimitado, tempo de duração do inquérito e permissão de acesso amplo por parte da defesa aos documentos da investigação — está sendo violado pela mais alta corte do país. Que repercussões e exemplos isso pode trazer para a democracia? Como advogado e presidente de uma seccional da OAB, instituição que sempre lutou pelo fim da censura, pela liberdade de expressão, pelo direito de livre opinião, pela liberdade de imprensa e pelo devido processo legal, digo que há perigosos exageros nos meios usados para combater os legítimos fins. Isso não é nada bom para a democracia que tanto defendemos.
Cássio Lisandro Telles, presidente da OAB Paraná.