A escolha direta da representação de qualquer grupo social organizado ou instituição da sociedade civil, tal qual a escolha dos representantes do povo nos poderes Executivo e Legislativo, apresenta-se como a mais fidedigna expressão da democracia. É o nascedouro inspirador desse regime, que se funda exatamente no poder emanado da coletividade, a soberania do povo. Não por acaso, as Constituições Democráticas, a exemplo da nossa, abrem suas redações estabelecendo exatamente essa premissa de que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. A expressão mais adequada seria aquela dita pelo ex-presidente da OAB, Bernardo Cabral, na condição de relator da comissão de sistematização da Constituição de 1988: “Todo poder emana do povo, mas com ele será exercido e não em seu nome”.
Esse fundamento está na origem da democracia e como bem lembra Canotilho, “a legitimação do domínio político só pode derivar do próprio povo e não de qualquer outra instância fora do povo real (ordem divina, ordem natural, ordem hereditária, ordem democrática); o povo é, ele mesmo, o titular da soberania ou do poder, o que significa: (i) de forma negativa, o poder do povo distingue-se de outras formas de domínio não populares (monarca, classe, casta); (ii) de forma positiva, a necessidade de uma legitimação democrática efetiva para o exercício do poder (o poder e exercício do poder derivam concretamente do povo), pois o povo é o titular e o ponto de referência dessa mesma legitimação – ela vem do povo e a este se deve reconduzir; a soberania popular – o povo, a vontade do povo e a formação da vontade política do povo – existe, é eficaz e vinculativa no âmbito de uma ordem constitucional materialmente informada pelos princípio da liberdade política, da igualdade dos cidadãos, de organização plural de interesses politicamente relevantes, e procedimentalmente dotada de instrumentos garantidores da operacionalidade prática deste princípio”. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª Edição. Coimbra: Ed. Almedina, 1998 pág. 281).
Escrevo esse artigo poucas horas antes de presidir o painel A Democracia Possível e a Relação entre os Poderes, marcado pela fala do notável jurista nacional Nabor Bulhões, no I Congresso Digital, realizado pela Conselho Federal da OAB.
A necessidade de escrever veio das reflexões em torno desse tema tão especial para a advocacia, a Democracia. Não há outra profissão tão identificada com esse valor como o a advocacia. Em verdade, desde a história antiga, os advogados apareciam como defensores desse regime de governo e, no Brasil, a Ordem dos Advogados, desde sua constituição mostrou-se indissociável da sua defesa.
O juramento do advogado traz esse compromisso intransigível de defender a ordem jurídica do Estado Democrático. E um juramento que acompanha a advocacia desde seu início e é por isso que a classe, historicamente, em todas as crises de autoritarismo no país, desempenhou papel essencial de resistência e de luta pela redemocratização.
Ou seja, está na essência da profissão de advogar a defesa do regime democrático e, por consequência, também da forma de escolha de representantes, com adoção de um sistema capaz de traduzir a vontade da maioria, legitimando o líder maior pelo debate direto com os eleitores, o que tem no voto direto, no nosso modo de entender, a mais adequada forma de escolha.
A OAB-PR e o CFOAB vêm discutindo a reforma eleitoral na instituição. Dentre os pontos em debate estão as eleições diretas para a diretoria do Conselho Federal. Atualmente, essa eleição é realizada no colégio eleitoral formado por 81 conselheiros federais, representando as 27 seccionais, através de voto de bancada. A eleição, portanto, é indireta e federativa. Embora os advogados escolham quem serão os conselheiros federais representantes da seccional, não existe votação direta para a diretoria do Conselho Federal.
Essa forma de escolha traz distorções, gerando um grande abismo entre a presidência do Conselho Federal e a base da advocacia, porque não existe sequer um debate entre o candidato a presidente e essa base, quanto mais a escolha por quem compõe os quadros da OAB. Pouco se conhece das ideias e projetos do candidato, pois não existe um diálogo prévio com a advocacia, não há ao menos uma divulgação ampla de projetos, de plataforma de propostas e nem mesmo os advogados e advogadas têm a oportunidade de conhecer as propostas ideológicas, na defesa da Constituição e da Democracia, dos direitos humanos e das garantias fundamentais, que o candidato propõe a fazer. Na realidade, quando a advocacia vota nos candidatos das subseções e dos conselhos seccionais, cuja chapa também abrange os três conselheiros federais, ela sequer sabe quem será o candidato a presidente do Conselho Federal.
Por outro lado, essa eleição em colegiado priva o candidato do contato direto com a base da advocacia, o que poderia contribuir também para a construção de seu projeto de gestão. Muito embora via de regra os presidentes do Conselho Federal sejam dirigentes de Ordem já experimentados em outras funções da instituição, eles trazem as realidades de suas seccionais e não do país continental que vive situações diferentes nas diversas regiões que o compõem. E mesmo que a diretoria também seja, via de regra, composta por diretores que vêm de cada uma das cinco regiões do país, nada é tão salutar ou capaz de substituir a riqueza do debate e do diálogo direto com a classe.
A OAB-PR, por unanimidade, em sessão realizada no dia 8 de maio deste ano, deliberou por eleições diretas para presidente do Conselho Federal. É eloquente e adequada a citação feita pela comissão relatora, composta pelos conselheiros seccionais Luiz Fernando Casagrande Pereira, Adriano Gameiro, Cristina Bichels Leitão e Ítalo Tanaka Junior: “Representar, no sentido político, segundo Bobbio, significa refletir a opinião. Como é que se pode considerar que o presidente da diretoria do Conselho Federal reflete a opinião dos advogados se sua eleição esteve fora da pauta de discussão do processo de escolha direta? Foi com o apoiamento mínimo de quem não tem mais mandato que a chapa foi lançada. Quando os conselheiros federais eleitos chegam, o jogo já está jogado. Esse sistema eleitoral é nitidamente inadequado.”
Uma instituição que tem tanto compromisso com a defesa da democracia não pode abrir mão da escolha direta de seu líder maior, porque essa forma é a que mais legitimidade dá ao discurso democrático. Escolha indireta, sem vínculo algum do candidato a presidente com as eleições para as subseções e o conselho seccional, prejudica a autoridade da OAB como defensora maior da democracia, a qual foi construída exatamente pela luta de seus integrantes em defesa do Estado Democrático de Direito no país.
A atual diretoria do Conselho Federal propôs esse debate, que está ocorrendo no âmbito da comissão nacional da reforma eleitoral na OAB, presidida pelo vice-presidente Luiz Viana Queiroz. A base da advocacia aguarda ansiosa o avanço dos trabalhos e a concretização dessa mudança, ainda na atual gestão. A OAB-PR já se posicionou e lutará para que a vontade da advocacia se torne realidade.
Cássio Lisandro Telles, presidente da OAB Paraná.