Melina Girardi Fachin
Os direitos humanos são idioma comum na contemporaneidade.
Não apenas pela sua proteção jurídica diferenciada, mas também pelas massivas e correntes violações.
Sua ordem contemporânea – iniciada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – estrutura-se para responder às múltiplas violações de direitos comandadas pelas atrocidades da guerra e dos totalitarismos.
Sob as cicatrizes barbárie, a proteção dos direitos humanos refunda-se sob dois pressupostos básicos: universalidade e da integralidade.
De um lado, a universalidade pugna pela condição humana como único fundamento para um conjunto inderrogável de direitos que deveriam ser garantidos a todos os indivíduos no globo.
De outro lado, a integralidade traduz visão una dos direitos humanos, apta a congregar os direitos civis e políticos e aqueles econômicos, sociais e culturais para melhor proteção da pessoa humana.
Quase setenta anos após, constata-se que essa concepção contemporânea, plasmada na Declaração de 1948, ainda não conseguiu consolidar suas promessas.
Dentre vários aspectos que se poderia assinalar, a ênfase na figura estatal, como sujeitos da responsabilidade internacional e interna por direitos, é o objeto da presente análise crítica.
Usualmente quando pensamos em relação aos direitos humanos reproduzimos a compreensão de que estes se colocariam em face ou por meio do Estado.
Sem que esta direção dos direitos seja verdadeira, pela complexidade das relações sociais contemporâneas, na projeção inclusive de múltiplos espaços públicos não estatais, é necessário pensar estes direitos também em outras relações que não aquelas envolvendo agentes estatais.
No âmbito do direito constitucional interno, as reflexões sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre privados já alçaram importante reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e legislativo.
Neste sentido a prestação jurisdicional contundente no caso do Recurso Extraordinário nº 201.
819, julgado em 27/10/2006:
“Os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas poderes públicos, pois também estão direcionados à proteção dos particulares em face dos poderes privados. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Sendo assim, o espaço de autonomia privada conferido às associações está limitado pela observância aos princípios e direitos fundamentais inscritos na Constituição”.
No âmbito internacional, todavia, o caminho é mais intrincado já que os Estados são ainda, por excelência, os grandes atores; a adesão aos compromissos internacionais é, via de regra, um ato de soberania e esta compreendida como atributo estatal.
Todavia, é crescente neste âmbito a preocupação com o papel das corporações privadas e suas implicações na realização dos compromissos internacionais assumidos, sobretudo aqueles atinentes aos direitos humanos.
É nesse cenário que se localiza o chamado Pacto Global ou, no original, Global Compact.
1 A iniciativa pioneira, no âmbito das Nações unidas, foi liderada, em 1999, pelo então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan.
É de contrato voluntá- rio envolvendo a prática responsável empresarial internacional sobre direitos humanos, direito do trabalho, meio ambiente e anticorrupção.
Do ponto de vista do conteúdo, o documento não inova substancialmente, inspirando-se em tratados e declarações já existentes, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração da OIT sobre o Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
Percebe-se, no âmbito das Nações Unidas, a preocupação nascente em relação à atuação não meramente econômica e geopolítica, como também humana das empresas.
O conteúdo articula-se em dez princípios fundamentais, quais sejam:
- As empresas devem apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente;
- As empresas devem certificar-se de que não é cúmplice de abusos dos direitos humanos.
- As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva; As empresas devem eliminar de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório;
- As empresas devem abolir efetivamente o trabalho infantil;
- As empresas devem a eliminar a discriminação em matéria de emprego e ocupação.
- As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais;
- As empresas devem desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental;
- As empresas devem incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis;
- As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina.
O Pacto tem uma perspectiva bastante pragmá- tica de como as empresas podem fazer para abordar questões de direitos humanos pode ajudar a tornar a ação de respeitá-los realidade.
Isso tudo, todavia, não substitui os deveres estatais que prosseguem sendo importantes, mas não únicos.
Tanto é que, em 2008, o Conselho de Direitos Humanos acolheu o framework “Protect, Respect and Remedy” proposta pelo relator especial para o tema de empresas e direitos humanos John Ruggie que é fundada em três pilares:
i) o dever dos estados de proteger contra violações a direitos humanos por terceiros, incluindo empresas; ii) responsabilidade das empresas de respeitar direitos humanos e iii) maior acesso às vítimas a remé- dios efetivos, tanto judiciais quanto não judiciais.2
Todavia, num mundo em que as maiores economias mundiais são crescentemente ocupadas por postos privados, é necessário que, ao lado (e não em substituição apenas) do ente estatal, as corporações privadas também assumam este papel.
Todas as empresas em todos os lugares, independentemente do tamanho ou setor, têm responsabilidades para com os direitos humanos.
As empresas que aderem ao Pacto assumem o compromisso de adequar-se à dezena de princípios, bem como ao dever de accountability estampado na prestação de contas para a ONU, bianualmente, por meio de Comunicado de Engajamento – Communication on Engagement (COE).
Para além do imperativo ético do respeito aos direitos humanos, o Pacto Global compreende a ótica empresarial e coloca a temática dos direitos humanos como questão de negócios.
Não respeitar direitos humanos traduz-se em riscos e custos para as empresas, incluindo danos à reputação, boicotes de consumidores, exposição à responsabilidade, riscos em relação aos investidores e parceiros de negócios, redução da produtividade, entre outros.
A catástrofe de Mariana, envolvendo a mineradora Samarco, é exemplo recente que demonstra a importância prática interna do que está aqui a se referir.
A cooperação para implementação dos direitos humanos não deve se resumir apenas aos Estados.
Em que pese reconhecer-se que a responsabilidade primária pesa sobre os Estados, há, quando menos, obrigações de outros agentes, sobretudo o setor empresarial, na realização do desenvolvimento.
Neste sentido, andou muito bem a OAB/PR que é a primeira seccional ao aderir o Pacto e que tem promovido esforços importantes, como o painel especí- fico sobre a temática na Conferência Estadual bem como a criação de uma comissão própria, a fim de cumprir com o compromisso de integrar os 10 Princí- pios do Pacto em suas operações.
1. UN GLOBAL COMPACT. Framework for implementation.
Melina Girardi Fachin
Advogada inscrita na OAB Paraná sob nº 40.856
Conselheira estadual da OAB Paraná
Membro de várias comissões na OAB Paraná, dentre elas a Comissão para Implementação do Pacto Global
Professora Adjunta da UFPR