A conferência de abertura do XII Simpósio Nacional de Direito Constitucional, na quinta-feira (26), tratou da possível desvinculação de recursos garantidos na Constituição Federal para áreas como saúde e educação e a necessidade de cuidado com possíveis reformas constitucionais. Ingo Wolfgang Sarlet, pós-doutor pela Universidade de Munique e professor da PUC-PR, e Heleno Torres, doutor pela PUC-SP e membro catedrático da ABDConst, alertaram para o risco de cortes em áreas consideradas essenciais contrariarem o que diz a Constituição de 1988.
“Uma questão sempre atual e polêmica no Brasil são as emendas constitucionais, a atuação do poder de reforma constitucional e seu controle jurisdicional. Poucos países emendaram tanto a sua constituição em 30 anos como o Brasil”, afirmou Sarlet. “Isso pode parecer bom, mas por outro lado abre grandes brechas. Os direitos sociais são cláusulas pétreas da nossa Constituição. Também há a discussão sobre a flexibilização do licenciamento ambiental, o que vem sendo fortemente questionado em meios ambientalistas.”
Sarlet traçou um paralelo entre o poder constituinte originário e o poder de reforma constitucional. “O primeiro como um poder livre e soberano, o segundo como um poder derivado. Esse modelo não foi abandonado. Há muitas razões para se criticar esse modelo, mas está vigente até hoje”, comentou. “Enquanto tivermos esse modelo, o poder de reforma constitucional é controlado. Até onde vai esse poder depende de cada país.”
Para o professor, o constituinte definiu claramente o que são os direitos fundamentais, que não podem ser alterados sem que a Constituição seja ferida. “Dentro da nossa Constituição, o constituinte estabeleceu prioridades. Há pisos mínimos de investimento público para educação e saúde. É possível afirmar que esses direitos ocupam posição preferencial. E essa posição preferencial deve ser considerada em uma eventual reforma constitucional. Educação, saúde e infância e juventude são as três prioridades estabelecidas pelo constituinte originário”.
Ele destacou ainda que, por serem direitos prioritários, a interpretação do legislador deve ser mais cautelosa. “Nenhuma constituição que eu conheça estabelece um piso mínimo de gastos com saúde e educação. A nossa estabeleceu porque o projeto constituinte era de construir uma sociedade solidária, e sem saúde e educação seria inviável”, disse. Para ele, enquanto os sistemas educacional e de saúde não forem plenamente contemplados, a Constituição brasileira não será cumprida. “Enquanto essas prioridades não forem minimamente atendidas, e isso sim faz parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, está vedada a reforma constitucional. Tudo que leve à desindexação de receitas está levando à morte o sistema de saúde brasileiro”.
Carga tributária – Heleno Torres falou sobre a alta carga tributária do Brasil e a necessidade de redefinição das taxas de juros, sem que isso, no entanto, afete a capacidade do Estado brasileiro de garantir direitos básicos. “Toda a Constituição pode ser interpretada pela sua função financeira. Não há um único artigo na Constituição que não envolva gastos públicos: direito à moradia, direito à saúde envolvem gastos públicos. E esse mesma Constituição traz um capítulo sobre o Sistema Tributário Nacional, que é o conjunto de tributos que financia esses gastos públicos. É uma falácia aquela atitude comum dos economistas, de que o erro e o defeito da economia brasileira vão pelo excesso de gastos públicos”, afirmou.
“Não falo sobre o desperdício de gastos públicos, ou dos eventuais casos de corrupção, que devem ser combatidos com veemência. Falo da concretização da Constituição, e não há possibilidade sem um orçamento eficiente. A constituição financeira está sob ataque de parcela de alguns economistas e de alguns que resolveram encontrar como solução para a crise a diminuição de gastos públicos.”
Torres avaliou que o governo deve adotar políticas responsáveis, mas que os gastos em setores essenciais não podem ser cortados, sem que se corra o risco de descumprir o exposto na Constituição. “É obvio que um governo responsável tem que assumir hoje um novo parâmetro de responsabilidade fiscal, a sociedade não vai tolerar o excesso do crescimento do gasto público sem o seu devido acompanhamento com critérios rigorosos, seguros e obedientes aos princípios constitucionais”, comentou. “Mas o que percebemos no Congresso é um somatório de projetos que envolvem a Lei de Responsabilidade Fiscal, desgarrados, levados pela oportunidade, dragados por incapacidade de compressão sobe quais são os critérios. Percebe-se que há um certo esquecimento do texto constitucional.”
Ele também destacou a importância do Direito Financeiro e do processo político na definição do orçamento. “O Direito Financeiro é como uma grande fênix: nunca deixa de ter importância, todo ano publica-se uma nova lei de orçamento e tem uma comissão mista permanente a deliberar sobre o orçamento público. Nesse contexto, precisamos ter um paradigma: assegurar a garantir de continuidade do texto constitucional. Um momento de crise não pode ser um apanágio para a restrição de direitos.”