Comissões da Seccional repercutem decisão do STJ sobre estupro infantil

O jornal Gazeta do Povo publicou na sua edição desta terça-feira (3) uma reportagem que repercute a decisão do STJ sobre estupro infantil e ouviu duas comissões da OAB Paraná. A presidente da Comissão da Mulher Advogada, Sandra Lia Bazzo Barwinski, e a vice-presidente da Comissão da Criança e do Adolescente, Mayta Lobo dos Santos, foram entrevistadas sobre o tema. A advogada Priscilla Placha Sá, membro de Comissões da Seccional, também foi entrevistada. Confira o texto na íntegra: 

Decisão do STJ sobre estupro infantil é exemplo de interpretação fria da lei
Vanessa Prateano

Há exatamente uma semana, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) causou rebuliço ao inocentar um homem acusado de estupro por se relacionar com uma menina de 12 anos de idade que se prostituía. Por cinco votos a três, os ministros decidiram que, se uma criança se prostitui há certo tempo, o cliente não pode ser considerado estuprador. O caso, ocorrido no estado de São Paulo, envolvia ainda outras duas adolescentes da mesma idade.
A sentença acompanhou voto da relatora do processo, ministra Maria Tereza de Assis Moura, para quem não houve violação da liberdade sexual das meninas – ela entendeu que, embora a priori, a lei classificasse como estupro qualquer relação com menor de 14 anos, nesse caso concreto, a presunção de violência foi relativizada mediante prova de que houve consentimento, interpretação amparada pela lei até 2009.
Como envolve menores de idade, o processo é sigiloso. A decisão foi publicada, em linhas gerais, no site do próprio STJ. De acordo com o que se lê no acórdão, “a prova trazida aos autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”.
Após a publicação, houve protesto imediato de parla­­mentares que integram a Co­­missão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre a Vio­­lência contra a Mulher. Também suscitou críticas do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que, indignada, pediu à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Ge­­ral da República que estudem meios de reverter a decisão.
Após tamanha repercussão negativa, o presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, admitiu que o tribunal pode voltar atrás. “O tribunal está sempre aberto para rever suas posições”, disse dias depois da decisão, mas sem especificar quando isso poderá ocorrer.
As advogadas Sandra Lia Barwinski e Mayta Lobo, especialistas na defesa dos direitos da mulher, da criança e do adolescente, condenam a decisão por relativizar um direito absoluto – a proteção a quem ainda não tem capacidade de tomar decisões importantes, como manter relações sexuais. Já a advogada Priscilla Placha Sá, que também atua na defesa dos direitos humanos, afirma que a decisão está amparada na lei. Acompanhe as entrevistas com as especialistas e a repercussão com leitores da Gazeta do Povo ao lado.

Entrevistas
Sandra Lia Bazzo Barwinski, presidente da Comissão da Mulher e advogada da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil.
Como recebeu a decisão do STJ?
Lembrei-me da decisão que inspirou o livro da jurista Silvia Pimentel, chamado Estupro: crime ou cortesia?. Dizia o seguinte: “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a sua vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia.”
Essa decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro data de 1974 e nossa cultura machista ainda oferece resistência ao conceito de igualdade entre os sexos. Sabemos que parte considerável das mulheres vítimas não denunciam pelo receio de virem a ser estigmatizadas. Um injusto sentimento de vergonha as inibe e oprime, deixando que aceitem para si próprias um sentimento de culpa, sobre a qual não têm nenhuma responsabilidade.

Em que sentido essa decisão viola os direitos da criança e da mulher?
A violência sexual não é um tema novo e as mulheres são as principais vítimas desse atentado à dignidade humana. É bom esclarecer que uma prostituta pode ser vítima de estupro se não consentir na relação sexual e houver emprego de violência ou grave ameaça. Profissionais do sexo são cidadãs e têm seus direitos assegurados. Aparentemente, entendo que houve violação ao Código Penal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à Constituição Federal, em especial quando esta trata da punição severa do abuso, da violência e da exploração sexual da criança e do adolescente.
A decisão também contraria as normas internacionais que asseguram que os direitos humanos das mulheres e meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. Para o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, “garantir estes direitos é um passo para acabar com a impunidade dos delitos de violência sexual”.

Por que um ato considerado tão grave pela sociedade ainda não é visto de forma consensual pelos juristas?
A questão é cultural. Estereótipos, preconceitos e discriminações de gênero estão presentes na nossa cultura e interferem na realização da justiça. Encontramos quem apoie e legitime desde o estupro como “arma de guerra” até o estupro conjugal ou de pai/filha ou avô/neta. Nosso papel só pode ser no sentido de desconstruir essa cultura, identificando o valor da dignidade humana como núcleo básico e informador de todo o nosso ordenamento jurídico. Acredito muito no Poder Judiciário e não tenho a menor dúvida de que a ele compete, acima de tudo, esse papel.

Mayta Lobo dos Santos, vice-presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB-PR.
Como avalia a decisão do STJ?
Não acreditei, fiquei indignada e envergonhada, principalmente por vir de um tribunal superior. Estamos falando de um colegiado, ou seja, essa não é uma decisão isolada, o que é muito pior. Lamentável.

Em que sentido essa decisão viola os direitos da criança, do adolescente e da mulher?
Uma menina que tem sua dignidade sexual violada aos 12 anos “por opção”, por ter escolhido “ser prostituta”, deve também ter escolhido não ter pais, parentes, professores, conselheiro tutelar e não ter ninguém da sociedade que a tenha protegido e evitado tamanha violação de direitos. Dessa forma, o STJ não reconheceu a negligência do Estado, da família nem da sociedade, e pior, não reconheceu nem o crime hediondo de estupro sofrido pelas meninas. Assim, violou brutalmente o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o da proteção integral ao adolescente, constante no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Para os ministros, a presunção de violência é relativa diante da realidade concreta e há margem para essa interpretação baseada no que a lei dizia em 2009, antes de ter esse artigo revogado. Essa decisão tem respaldo legal?
De forma alguma. Vale lembrar que o ECA está em vigor desde 1990 e ele protege a criança e o adolescente de forma integral, sem relativizar. A lei que foi revogada poderia abrir brechas para isso, mas o ECA já afirmava que a criança não tem discernimento para tomar decisões sobre o seu corpo. Portanto, a lei deveria ser interpretada de acordo com o estatuto. A prova de que a presunção é absoluta é que, em 2009, o legislador classificou como estupro, sem concessão, qualquer relação com menor de 14 anos. Ou seja, ele apenas reiterou algo que já deveria ser visto como um direito absoluto. Essa discussão [se é relativo ou absoluta a presunção de violência] nem deveria existir. 

Caso a decisão seja mantida, pode estimular a impunidade?
Dá sim margem à impunidade, inclusive em relação à exploração sexual infantil, pois se você parte desse raciocínio, de que com consentimento não houve estupro, então a exploração sexual de crianças e adolescentes é legal? Vamos dar margem para essa ilegalidade e descaracterizar a responsabilidade do criminoso.

“Lei não pode retroagir em prejuízo do réu”
Há fatores, envolvendo a legislação, que tornam complexa a discussão do caso. A data em que ocorreu o fato julgado pelo STJ tem grande peso na decisão, de acordo com a professora de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná Priscilla Placha Sá, que defende o posicionamento da corte.
Até 2009, havia no Código Penal, no artigo 224, a chamada “presunção de violência”, que admitia que toda relação com menores de 14 anos era violenta, independentemente de haver ou não algum tipo de agressão, já que fazer sexo com pessoas abaixo dessa faixa etária era considerado abuso.
A professora afirma que a lei, no entanto, permitia tanto interpretações no sentido de que a presunção é absoluta – o objetivo é criminalizar o ato, independemente de haver prostituição ou não – ou relativa, podendo deixar de existir caso uma prova seja apresentada. Neste caso, o consentimento foi provado pelo fato de as crianças se prostituírem há tempos.
Após 2009, a relação sexual com menores de 14 anos passou a ser considerada “estupro de vulnerável”, sem possibilidade de interpretações diferentes. A presunção hoje é absoluta. Porém, como o caso ocorreu antes da mudança e a lei não pode retroagir em prejuízo do réu, os ministros entenderam que era possível se valer do princípio da presunção relativa neste caso em particular.
Para Priscilla, o debate não deveria estar centrado apenas na culpa do acusado, mas na responsabilidade do Estado, sociedade e família, que falharam antes ao expor as crianças à situação de risco, ou nada fizeram para erradicá-la. Ela ainda defende que prender o homem não restaurará os direitos das meninas, tampouco reeducará o réu, tendo em vista “a situação deplorável e violenta das prisões no Brasil”.
“É fácil deslocar o olhar para o acusado e para a relatora da decisão. A questão é mais complexa e exige comprometimento de todos. A violação dos direitos humanos já aconteceu há muito e seria fácil colocar responsabilidade penal apenas no fim desta história”, finaliza.

Fonte: Gazeta do Povo
Foto: Fachada do STJ

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