A 8ª Conferência da Advocacia Paranaense terminou na noite desta sexta-feira (27/10) com a aprovação da Carta de Curitiba, a divulgação dos vencedores do I Moot de Processo Civil e uma surpresa para o público. O final do evento contou com a participação da atriz curitibana Guta Stresser, que fez a leitura dramática de um texto sobre liberdade, justiça e solidariedade (leia abaixo a íntegra).
Ao declarar encerrada a 8ª Conferência, Marilena Winter agradeceu os participantes, os palestrantes, os colaboradores, a diretoria da OAB Paraná e todos os envolvidos na realização do evento, que se destacou pelo modelo inovador, pela inspiração nos ideais da histórica Conferência de 1978 e pelo maior número de inscritos entre todas as edições (16 mil).
“Foi uma missão cumprida com louvor por todas as pessoas que nos ajudaram, que se envolveram e participaram. Fica o sentimento de gratidão. As palestras foram extraordinárias. Deixamos um legado muito importante, ao resgatar a Conferência de 78, que foi a base do Estado de Direito. Esta conferência também deixará uma marca importantíssima”, avaliou a presidente da OAB Paraná, Marilena Winter.
Texto interpretado por Guta Stresser
Não há nada que substitua a liberdade, essa inabalável condição humana. Se a liberdade está presente, nela pouco se pensa. Mas ao primeiro indício de supressão, nos falta como o próprio ar que respiramos…
Somos livres para sentir, para pensar, repensar, para expressar sentimentos e pensamentos, para silenciar – para concordar e para criticar. Somos, por consequência, também livres para sermos elogiados ou criticados.
Somos livres para crer ou para não crer tanto assim. Para ir, para vir, pelo caminho que desejarmos. Para parar, para voltar…
Somos livres para escolher em quem votar, livres para viver de acordo com nossas próprias convicções, livres para formar as próprias convicções: educar-nos, emancipar-nos. Já disse Ortega y Gasset que “a liberdade é a chave para desvendar o ser humano”. Ou, para os amantes da literatura, já disse Albert Camus: “liberdade nada mais é senão a chance de ser melhor”.
As liberdades – assim, no plural – são os valores mais caros a qualquer projeto de vida com dignidade. Numa sociedade com garantia de liberdades, as pessoas têm “coragem” – palavra que, não por acaso, é herdeira do francês courage e do latim cordis, que significa “coração”. Sim, as liberdades permitem viver com o coração, de peito aberto.
Permitem também viver com poder. Não aquele poder que corrompe e deslumbra. Mas aquele poder que realmente importa: poder para defender seus valores, sua vida, seus sonhos, seus amores, seus corpos, seus planos. Não há que se esconder, calar, fingir, dissimular, intimidar-se.
Foi por isso que a OAB lutou em 1978 e ajudou a redemocratizar o país. Quem vivenciou aquele momento histórico provavelmente não conseguiu dimensionar a relevância para todas as gerações que estavam por vir… E eis a razão de estarmos aqui, agora, lutando pela manutenção da democracia e para que todas as liberdades conquistadas sigam intocáveis. É necessário, sempre, manter a vigília. E a OAB sabe disso.
Nós, advogados e advogadas, estivemos todos juntos nestes últimos dias novamente em Curitiba, na 8a Conferência Estadual da advocacia para lembrar que sem a advocacia não há Justiça e sem Justiça não há Liberdade. A advocacia tem muito a contribuir com o nosso país e com o sistema de justiça, é verdade. Mas o papel da advocacia vai muito além. A advocacia tem muito a contribuir com a essência de cada um de nós, humanos que somos.
As nossas opiniões podem não coincidir. Mas reafirmamos, em cada canto deste evento, a plena liberdade de expressar o que pensamos e de debater publicamente nossas ideias. Conscientes, inclusive, que é no confronto – sempre de ideias, nunca de pessoas – que se constroem ideias e ideais. É na divergência, é na multiplicidade, na diversidade que se cresce.
Juntos, reafirmamos que, diante de arbitrariedades que buscam ameaçar as liberdades estaremos sempre prontos para a batalha, porque temos a consciência, o conhecimento e a coragem necessários para defender os valores mais caros ao Estado de Direito. Assim como há 45 anos, aqui em Curitiba, fizeram os bravos advogados e advogadas brasileiros, usamos a nossa voz – que permite tantas outras vozes sejam ouvidas… – como instrumento de luta permanente pela liberdade de todos.
De todos.
Quando a liberdade pertence apenas a alguns, não se chama liberdade. Ela é de todos, universal, indistinta. É direito humano. Nenhuma barreira social, econômica, política ou ideológica pode alienar as liberdades dos seres humanos. Nenhum muro – concreto ou imaginário – pode segregar as liberdades humanas. A garantia das liberdades de todos é o que nos torna iguais no Estado de Direito. Igualdade, essa palavra tão bonita, tão necessária e por vezes tão distante.
Conviver em harmonia entre tantas diferenças, sabedores que todos são livres e iguais, nem sempre é fácil. Não faltam exemplos históricos, recentes e contemporâneos da dificuldade/ incapacidade humana de atingir e respeitar esse equilíbrio entre a própria liberdade e a liberdade alheia: holocaustos, apartheids, muros, guetos e ditaduras, terrorismo, milícia, revanche, vingança, arbitrariedades. Abuso de poder.
A História é repleta de atrocidades cuja origem é o não reconhecimento da liberdade alheia e a consequente discriminação de pessoas, ideias, ideologias e credos, transformando a violência em método. E nem só do grande poder estatal parte a perseguição, a censura, a recusa aos direitos e restrição de direitos aos “mais iguais”…
Quando se fala em igualdade e em respeito às liberdades é fundamental que cada um de nós se dedique à tarefa de perscrutar o próprio agir no mundo. Tal como um “detetive de interiores” – assim diz Valter Hugo Mãe – é preciso analisar, com lupa e o máximo cuidado, a própria conduta para identificar – muitas vezes disfarçada, maquiada – a injustiça em gestos cotidianos que desconsideram as minorias, que calam o outro em razão do gênero, da raça, da condição social, da etnia, do credo, da idade ou da capacidade laboral.
A Justiça atende por outros nomes. E solidariedade é um deles.
Não tratemos a justiça, a liberdade, a solidariedade como ideais distantes, estampados nas letras frias das leis. Sejamos agentes de mudança, promotores de igualdade, defensores de direitos humanos.
Como a poeta curitibana Neuzi Barbarini que “Sonha poemas
Em capas duras
E iluminuras.
Acorda banal,
Lápis em papel jornal”.
Sonhemos poemas, sonhemos ideais, mas acordemos conscientes das nossas próprias responsabilidades e capacidades: as de caneta- pena, capazes de grandes livros e as – não menos importantes – de lápis, em papel jornal.
Há de chegar o dia, o grande dia, em que todos nós estejamos conscientes de que uma vida digna — sem fome, sem ódio e sem guerras; com liberdades, com saúde, com respeito – é, sim, direito de cada ser humano.
Charles Chaplin nos alertou, já na década de 70:
“As máquinas que trouxeram mudanças nos deixaram desamparados.
Nossos conhecimentos nos deixaram cínicos. Nossa inteligência nos deixou duros e impiedosos.
Nós pensamos demais e sentimos muito pouco.
Mais do que maquinaria, nós precisamos de humanidade.
Mais do que inteligência, precisamos de bondade e compreensão.”
Não precisamos renunciar às máquinas, às nossas conquistas tecnológicas. Não precisamos renunciar à inteligência, ao conhecimento técnico. Mas precisamos, de forma urgente e irrenunciável, olhar uns para os outros; resgatar nossa humanidade; nossa compaixão.
Como aquele homem, advindo das palavras de Rubem Alves, que era apaixonado pelas estrelas e, por isso, inventou a luneta. Formou- se uma escola para estudar a luneta. Desmontou-se a luneta, analisou-se por dentro e por fora. Observaram encaixes, mediram as lentes. Sobre as lunetas foram escritas muitas teses de doutoramento e organizados muitos congressos e conferências. Tão fascinados os homens ficaram pela luneta que nunca olharam para as estrelas.
A todos, nosso mais sincero agradecimento: pelo tempo, pela presença, pelo comprometimento. Que cada um leve daqui ainda mais coragem – essa palavra, cuja etimologia guarda ligação com o coração – para perseguir, de forma viva, de forma pulsante, o ideal de um mundo melhor para todos. Que cada um compreenda verdadeiramente a luneta através da qual vê o mundo…mas que nunca, nunca, esqueça de parar e admirar as estrelas.
Texto de Marilena Winter e Marion Bach