Assinado por quatro conselheiros seccionais da OAB Paraná — Julio Brotto, Kelly Cristina de Souza, Luiz Fernando Casagrande Pereira e Maíra Marques da Fonseca — , artigo publicado na Gazeta do Povo defende o equilíbrio e a convivência harmônica dos dirigentes de Ordem, citando a exemplar atuação do advogado José Lucio Glomb, homenageado este ano com a medalha Vieira Netto, na gestão 2010/2012.
Confira aqui o link ou leia abaixo na íntegra.
A missão da OAB e o exemplo de José Lúcio Glomb, novo detentor da medalha Vieira Netto
Por Julio Brotto, Kelly Cristina de Souza, Luiz Fernando Casagrande Pereira e Maíra Marques da Fonseca
O Conselho Pleno da seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou a entrega da honraria máxima da entidade, medalha Vieira Netto, ao ex-presidente José Lúcio Glomb, com solenidade de entrega realizada no Dia do Advogado. A OAB tem múltiplas missões ditadas pelo seu Estatuto, todas inegavelmente importantes. Se não houver equilíbrio e convivência harmônica, a missão institucional pode se confundir com indevido uso político da entidade. Um exemplo de Glomb ajuda a entender bem a necessária harmonia.
Correndo o risco de dizer o óbvio, todos os dirigentes da OAB têm preferências políticas. É absolutamente natural. Os conselhos, como regra, têm uma composição política heterogênea. Apesar disso, é possível conviver bem com a pluralidade ideológica. De qualquer forma, é necessário ter em conta que posições políticas geram análises enviesadas. Todos tendem a concordar com as posições coincidentes com as suas próprias opiniões políticas. Também é algo natural. Aliás, reconhecer que essas posições políticas existem é um passo obrigatório para saber como evitar as armadilhas e as distorções dos chamados vieses cognitivos. Quando se fala em nome da entidade, todos devem fazer um enorme esforço para deixar tendências políticas pessoais de lado. É necessário identificar, acima de tudo, a posição institucional ideal para a entidade. Aqui no Paraná essa é a regra: uma OAB imune às inclinações políticas particulares dos dirigentes.
A regulamentar distância das preferências políticas individuais, no entanto, não pode redundar em uma posição institucional indiferente. A OAB deve se posicionar em momentos de crise. A defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito é uma obrigação expressa do nosso estatuto (artigo 44, I). Não há espaço para omissões.
É claro que o tema está um tanto contaminado pelo estado da arte da atual diretoria do Conselho Federal. Na opinião de muitos, o presidente nacional da entidade parece ter cruzado a linha que separa política institucional de política partidária. É necessário reconhecer, no entanto, que se trata de um problema circunstancial. Importa mais um olhar prospectivo, considerando os bons momentos da entidade.
Alguns advogados externam preocupação com o fato de a OAB se pronunciar sobre questões políticas. Entendem que a OAB deve dirigir as suas energias exclusivamente para as verdadeiras preocupações da advocacia. Aqui está o core do texto: debater esse aparente dilema sobre o que deve – e o que não deve – ser pauta da OAB. Diferentemente do que imaginam alguns, é possível sustentar que não há uma “escolha de Sofia” (como na hipótese do livro de Willian Styron, transformado em filme estrelado por Meryl Streep). Quem bem explicou a matéria foi Márcio Thomaz Bastos, ex-presidente da OAB de São Paulo e do Conselho Federal, respondendo a perguntas de Pierre Moreau, advogado que fundou a Casa do Saber e organizou o livro Grandes Advogados, publicado em 2011:
“A OAB, em função do seu estatuto, tem uma função dúplice. Por um lado, tem um trabalho corporativo, que é organizar a advocacia, defender as prerrogativas dos advogados, punir profissionais que cometem infrações éticas, organizar as coisas dentro da profissão perante todos os foros e todas as instâncias. O outro lado é o institucional e, nesse aspecto, a Ordem cresceu de uma maneira muito forte. Vocês não se lembram, mas em 1984 teve a campanha das Diretas Já, que mobilizou todo o país. Era o tempo da ditadura e foi um movimento muito bonito. Nessa ocasião, foi a primeira vez que a OAB subiu num palanque para fazer comício”.
Um detalhe importante: quando a OAB foi às ruas defender as “Diretas Já”, estava vigente o Estatuto anterior (Lei 4.215/1963), também impondo ao Conselho Federal o dever de “defender a ordem jurídica e a Constituição da República” (artigo 18, I). As competências institucionais da OAB foram ampliadas no novo Estatuto (Lei 8.906/1994). Aliás, nunca estivemos sozinhos neste dever; a defesa do Estado de Direito é uma finalidade da Federación Argentina de Colegios de Abogados, consta do Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal e uma missão expressa da American Bar Association.
De volta à entrevista, segue Thomaz Bastos:
“Como toda coisa dupla, existe aí uma tensão dialética para não cair nem para um lado nem para outro. É como andar em cima de um fio de alta tensão, com cuidado para não pender mais para um ou outro lado. A OAB nem pode ficar excessivamente dentro de si mesma, só cuidando de interesses corporativos, e nem pode se atirar demais para fora, esquecendo os interesses corporativos e fazendo papel dos partidos políticos. Isso a Ordem não pode fazer. A OAB pode fazer política e, para isso, está legitimada pelo estatuto, mas não a ponto de fazer política partidária. Cabe a ela a função de fazer política num sentido mais amplo, abrangente, no sentido institucional”.
E arremata o ex-presidente do Conselho Federal: “Esse equilíbrio é importante e, muitas vezes, difícil de conseguir”. Sem menosprezar as demais seccionais, aqui no Paraná se manteve esse equilíbrio. Vale a pena, a propósito, relembrar um grande momento da nossa seccional, e aqui entra em cena o exemplo do novo detentor da medalha Vieira Neto. Há mais ou menos dez anos, a OAB uniu todos em torno do movimento “O Paraná que queremos”, sob a liderança de José Lúcio Glomb. Não era algo que dissesse diretamente respeito aos interesses mais corporativos, no sentido positivo da expressão (prerrogativas, honorários, advocacia iniciante), mas ninguém nunca ousou insinuar que a OAB estava sendo usada politicamente. Atuar politicamente não é o mesmo que usar a OAB politicamente. A diferença não é meramente semântica; é de postura. E a postura, aqui na OAB do Paraná, todos conhecem.
A gestão de Glomb resolveu bem a tensão dialética entre as funções da OAB. Recuperar as notícias da época ajuda a entender o ponto. Ao mesmo tempo em que discursava na Boca Maldita para criticar a corrupção que tinha tomado conta da Assembleia Legislativa, ao lado do agora saudoso professor René Dotti, Glomb não deixava de cuidar dos honorários da advocacia dativa, em ação judicial da seccional na Justiça Federal, para dar apenas um exemplo. E nesse mesmo sentido seria possível oferecer múltiplos outros exemplos.
É claro que o grau dedicado a cada uma das funções depende do presidente da entidade e do momento histórico. Diz Marly Silva da Motta em artigo publicado na revista Ciência Hoje:
“Claro está que o ‘estilo’ pessoal de cada presidente influenciou o tipo de atuação da Ordem. Desse modo, pode-se atribuir o tom forte da ação político-institucional da OAB durante as gestões de Eduardo Seabra Fagundes (1979-81), de Mário Sérgio Duarte (1983-85) e de Hermann Baeta (1985-87) não só às inflexões políticas do período – abertura e transição democrática –, mas sobretudo ao esforço que fizeram no intuito de colocar a instituição que presidiam na linha de frente do debate político. O argumento ganha consistência na medida em que, nessa mesma conjuntura, a gestão de Bernardo Cabral (1981-83) foi marcada por uma acentuada preocupação com questões ligadas ao interesse da Ordem como corporação: maior controle sobre a qualidade do ensino jurídico e a expansão dos cursos de Direito, dentre outras”.
As funções da OAB, portanto, não são excludentes. Repita-se: não há a escolha de Sofia. Não há necessidade de se matar uma das missões estatutárias para garantir a sobrevivência de outra. Podem todas viver em harmonia. Basta ter o equilíbrio que sempre houve, como no exemplo de Glomb.
Além disso, cabe rememorar que as missões institucionais da OAB são estatutárias. E o Estatuto, correndo outra vez o risco de dizer o óbvio, não é um negócio jurídico associativo; é lei federal. Não está na esfera de decisão da Ordem renunciar à defesa da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. Trata-se de imperativo legal (artigo 44, I, do Estatuto). À OAB cabe apenas uma análise de conveniência e oportunidade sempre que a ordem jurídica estiver em risco. Não se pode ser seletivo no cumprimento do Estatuto.
E há mais a ser considerado. A OAB tem essa força para defender os temas internos precisamente pelo papel institucional que exerce. Quanto mais a OAB falar para fora, pugnando pela boa aplicação das leis, como fez Glomb, mais poder político tem para qualquer das demandas corporativas. Bem resolvida a tensão dialética, o cumprimento equilibrado das duas missões gera um círculo virtuoso: a defesa da Constituição empodera a OAB para todas as demais demandas mais diretamente ligadas à advocacia.
Recentemente, a OAB combateu (e agora voltou a combater) a majoração generalizada das custas cartoriais. É um tema umbilicalmente atrelado à advocacia. É inegável o respeito que a OAB tem em qualquer discussão perante os três poderes. Esse respeito não é o mesmo de todas as demais entidades de classe. O respeito e a força que a OAB tem se relacionam com o papel institucional exercido de forma correta. É o que dá musculatura política para a entidade.
Quando o presidente Cássio Telles, atualmente, vai ao Tribunal de Justiça e à Assembleia Legislativa para divergir do aumento abusivo das custas, faz-se acompanhar do histórico de saudável luta institucional da entidade. Metaforicamente, é possível dizer que Cássio sempre leva junto Glomb, Noronha, Breda, Alberto e Assis, para ficar apenas nos mais recentes, todos com bandeiras institucionais nas respectivas gestões. Leva também Virmond, para citar uma gestão mais distante, mas tão marcante quanto. A propósito, em 1978 – há 43 anos –, na famosa VII Conferência Nacional dos Advogados do Brasil, o nosso ex-presidente Eduardo Rocha Virmond fez discurso histórico e, ao mesmo tempo, muito atual. Vale conferir um trecho:
“Os advogados, nos momentos mais difíceis, nas crises mais cruentas, demonstraram o seu patriotismo nas horas de tormenta e adquiriram o respeito das consciências dos demais brasileiros. Em 1944, foi a Ordem que tornou evidente o movimento de restauração das regras do jogo democrático. [Foi] em 1972 [que a Ordem denunciou], na Declaração de Curitiba, os instrumentos de exceção com base no Ato Institucional n.º 5; e, ainda, na frustrada reforma da Justiça. No Brasil, nós juramos defender a Constituição. Esta é a missão que, pedindo um Estado de Direito para o povo brasileiro, destinatário do Poder e das instituições, nós estamos exercendo”.
Alguém pode dizer que Virmond não poderia ter colocado a OAB a exercer o papel institucional de defesa do Estado Democrático de Direito, pois essa defesa tiraria a entidade dos temas mais ligados à advocacia? A resposta é obviamente negativa. Como registrou o próprio Virmond, foi na luta institucional que a OAB conquistou “o respeito das consciências dos demais brasileiros”. A verdade é que as lutas institucionais dos ex-presidentes empoderam a entidade para tratar de qualquer tema. Por isso é que não se pode deixar de exercer o papel institucional que o Estatuto, lei federal que é, outorgou à OAB.
De igual forma não pode haver dúvida de que foi a luta da OAB pela restauração do Estado Democrático de Direito que nos entregou a importância que temos na Constituição Federal elaborada ao fim do regime de exceção. Não apenas a partir do art. 133 da CF, mas, como lembrou Ayres Brito em julgamento do RE 603.583 no Supremo, “na Constituição há 42 referências a advogado, advocacia, OAB e Conselho Federal da OAB; 42 referências expressas à realidade do advogado, da advocacia, da OAB e do Conselho Federal da OAB”. No mesmo julgamento, o ministro Luiz Fux consignou:
“Como é cediço, a OAB tem participação constitucionalmente assegurada em todas as fases dos concursos públicos para cargos na Magistratura (artigo 93, I), do Ministério Público (artigo 129, § 3º) e das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (artigo 132). Possui assento no CNJ (artigo 103-B, XII) e no CNMP (artigo 130-A, V), apresenta listas sêxtuplas para a composição dos Tribunais inferiores e do Tribunal Superior do Trabalho por intermédio do quinto constitucional (artigos 94 e 111-A, I, respectivamente), bem como para a composição de um terço do Superior Tribunal de Justiça (artigo 104, parágrafo único, II). Os advogados integram, ainda, o Tribunal Superior Eleitoral (artigo 119, II) e os Tribunais Regionais Eleitorais (artigo 120, § 1.º, III), além dos diversos órgãos colegiados da Administração Pública em que, por disposição legal, há advogados indicados pela OAB”.
Esse espaço na Constituição Federal a OAB deve a muitos advogadas e advogados como Virmond. Isso não pode ser subestimado.
O Paraná sabe e sempre soube resolver com o equilíbrio a tensão dialética da dupla função da entidade. O que deve haver, em verdade, é um círculo virtuoso. Para a Seccional do Paraná sempre foi assim. E também deve ser assim sempre. Não há escolha de Sofia. O exemplo do novo detentor da medalha Vieira Netto, José Lúcio Glomb, é a prova disso.